domingo, 23 de outubro de 2011

O esquecido Congo colonial transformado em livro

O fantasma do rei Leopoldo: uma história de cobiça, terror e heroísmo na África colonial (HOCHSCHILD, Adam, tradução Beth Vieira, Companhia das Letras, São Paulo, 1999, 378 páginas), mescla de romance literário, pesquisa historiográfica e denúncia jornalística, é a primeira obra a popularizar-se pelo mundo a tratar de um capítulo da história africana ainda pouco estudado e cheio de incertezas: o início da dominação belga no Congo, feita pelo rei Leopoldo II. Enquanto as pesquisas ainda se voltam para os Impérios britânico e francês e, menos freqüentemente, português e alemão, Adam Hochschild mostra como o soberano de um pequeno país, como a Bélgica, foi responsável pela morte de dez milhões de africanos.
O livro começa com uma narrativa quase biográfica de duas personagens, uma central na obra toda e outra que vai perdendo importância conforme o texto vai deixando de se apresentar como romance para priorizar seu caráter histórico. São essas personagens o próprio rei Leopoldo, que dá título ao livro, e o explorador Henry Morton Stanley. No início, as trajetórias destas duas figuras parecem estar bem distantes. Mas a obsessão de Leopoldo em constituir uma colônia e fazer parte do “bolo africano”, tão saboreado pela Europa do final do século XIX, acaba por transformar Stanley no primeiro grande aliado do rei. Problemas na infância, personalidades conturbadas, tabus sexuais recheiam os primeiros capítulos, antes de o Congo entrar na história e na História do livro
Não demora muito para que a obra passe a focar um intrincado jogo de relações diplomáticas que levarão ao reconhecimento da dominação do Congo. O livro mostra como Leopoldo, ainda que antagonista da obra e responsável por um sistema veementemente criticado pelo autor, ainda hoje pode ser considerado um verdadeiro professor de relações exteriores. Consciente da posição não muito privilegiada de seu país frente aos demais vizinhos europeus, o rei reveste seu projeto colonial de uma máscara filantrópica e científica, e consegue ludibriar um continente inteiro com a esperança do livre comércio. O reconhecimento do Congo incia-se nos Estados Unidos e ganha a Europa na Conferência de Berlim. Ao fundar o Estado Independente do Congo, Leopoldo não lhe mostra ao mundo como colônia belga, até porque seus poderes neste país eram restritos pelo parlamento. Na verdade, o Congo passa a ser, como tanto frisa Adam Hochschild, propriedade particular do soberano.
A esta altura, embora a vida das personagens que vão aparecendo no decorrer da obra ainda esteja sempre presente, o livro já passa a enfocar a pesquisa histórica, não só descrevendo o opressor regime de trabalho compulsório que sustentava o lucrativo comércio de borracha, como também apresentando fontes de pesquisa, como fotos, trechos de diários de europeus que estiveram no Congo e, algo raro de se encontrar ao estudar a época, até mesmo a transcrição de depoimentos de africanos.
A primeira parte do livro, intitulada “Caminhando rumo ao fogo”, vai até o auge da exploração da borracha. Nesta parte, a contestação ao regime se faz pouco presente, sendo feita, a princípio, pelo missionário Willian Sheppard, afro-americano que visita a região e denuncia o trabalho compulsório ao mundo. Sua morte prematura faz com que sua voz tenha pouco alcance e não impacte, de fato, a autoridade de Leopoldo. Também na primeira metade, Adam Hochschild levanta a teoria de que a personagem Kurtz, do romance “O coração das trevas”, não é pura criação de Conrad, seu escritor, e sim um verdadeiro retrato do explorador branco.
É em “Um rei encurralado”, segunda parte do livro, que surgem os dois grandes opositores ao regime de Leopoldo e a campanha humanitária que mudará o destino político do Congo. E. D. Morel era um funcionário da companhia holandesa responsável pelo comércio no Congo; Roger Casement, um diplomata britânico, de origem irlandesa. Morel, ao observar o que chegava e o que ia para o Congo, torna-se o primeiro a perceber a matemática de Leopoldo e a identificar sinais de trabalho forçado. Casement, graças a sua função, conhece o Congo e torna-se a grande testemunha de que Morel precisava.
O livro mostra toda a campanha criada por Morel, a primeira do século XX em escala planetária, ao mesmo tempo em que descreve todo o jogo político de Leopoldo para defender a boa imagem de seu regime perante os grandes do mundo. Mas, além de depoimentos de missionários e aliados no meio político e literário, Morel já conta com o advento da fotografia, e consegue colocar as sociedades estadunidense e britânica contra o rei, que acaba cedendo o Congo à Bélgica e sujeitando-o ao mesmo aparato político que restringia seus poderes.
Mesmo durante a derrocada de Leopoldo, a obra nos coloca uma série de questões, como a contradição entre as críticas a Leopoldo e o sistema igualmente brutal promovido pelas grandes potências em outras partes da África e do mundo, ou a derrota do rei e a também brutal colonização belga (agora sim, belga) imposta ao Congo posteriormente.

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