sábado, 27 de novembro de 2010

Nekrópolis

Veio-me na cabeça a peça. Retrato vivo de sociedade morta. Inversão cruel dos chamados "valores". Encantador ver como um grupo que comete os maiores crimes de estômago conquista a platéia. E trágico pensar em como essa mesma platéia reagiria, comovida, aos mesmos fatos, se soubessem serem reais. E, a bem da verdade, não são? Quantas "Estirpes" nunca concretizadas existem por aí? Ficaria essa platéia, que tornou-se advogada da defesa, crítica de uma geração precedente outrora vitoriosa e conformista, feliz, na vida real, em sua carne viva, se uma dessas "Estirpes" de verdade matasse a velhinha? Conseguiriam ver o mesmo bem que fingem enxergar na ação quando voltam seus olhos pro palco? Os artistas, justificando-se, dizem ter apresentado um texto imparcial. Manipulação artística (o que pode ser, ao mesmo tempo, hipócrita e brilhante) ou um tapa na cara de nós, platéia? Não escrevo isso como crítica à peça, artistas, texto, tampouco à Estirpe. Critico-me. Só isso. Questiono-me eu, cômodo diante do julgamento que a arte me envolveu. Queria não só saber como reagiria. Ao invés de platéia telespectadora (e a peça nos mostra o quanto somos -tele), por que não agentes deste tão belo crime? Se os admiramos tanto... quem desenterrou algum de nossos assassinatos ao sair do teatro? Quão semelhantes somos àquelas testemunhas! Macabéias soterradas e atropeladas depõe todo dia no head phone. E quanto aos jogos... se a criança é o que há de mais humano em termos de essência, quão sádicos somos! Controlamos este sadismo ao apertar o botão. E, pensando no prazer que este sadismo nos proporciona, vem-me a cabeça nova indagação: a Estirpe protestava ou se regozijava ao desenterrar? Isso! Eis a resposta que o júri não pôde dar: nem terrorismo nem crime político! Não foi nenhum sacrifício dar àquele shopping, materialização mais próxima que aqueles jovens encontraram de nossa medíocre burguesia emergente, submersa na ilusão Brasil, eles gostaram de dar a eles, a eles que acabei de ver a poucas estações de casa, o soco no estômago de Clarice. Podia jurar que o quadro renascentista de cadáveres que sequer nasceram estava lá, onde jantei. Principalmente pela normalidade inerente à rápida capacidade de recuperação do ser humano. A Estirpe chocou, morreu e... como tudo, foi esquecida. Talvez martirizada por quem se julga consciente. Não serão Cazuza e Cássia minha Estirpe? Qual nossa dificuldade em se espelhar naquilo que deu certo? E se a Estirpe tivesse sido absolvida? Então, eu, população civil, visto-me de jurado e, com toda arrogância que a lei poderia me dar, exacerbando poder sobre quem não sou eu, decido: absolvo! Absolvo-te, Estirpe, sei que seguirão suas vidas, e a lembrança destes cadáveres talvez até lhes façam discordar de Clarice.